domingo, 6 de novembro de 2016

Texto Complementar: O Marxismo e o Anarquismo

# O marxismo
No princípio era o Verbo... É o pensamento que tudo cria e produz ? Seria preciso pôr: no princípio era a Força... O espírito vem em meu auxílio! Vejo de súbito a solução e escrevo com segurança: No princípio era a Ação. (Goethe) 

Os filósofos não têm feito senão interpretar o mundo de diferentes maneiras: o que importa é transformá-lo. (Marx) 

Introdução

As revoluções burguesas do século XVIII se encontravam, no início do século XIX, ameaçadas pelas forças conservadoras do feudalismo em decomposição, representadas pela nobreza e pelo clero, ansiosas para restaurar o absolutismo e excluir a burguesia do poder político. As forças revolucionárias eram representadas pela burguesia e pelo crescente proletariado, ambos descontentes com a situação sócio-econômica, o embate dessas forças se fez sentir em 1830 e 1848, nos grandes movimentos liberais e nacionais que, iniciados na França, se estenderam pela Bélgica, Polônia, Alemanha, Itália, Portugal e Espanha. 
A partir de 1848. o proletariado procura a expressão de sua própria ideologia, oposta ao pensamento liberal e inspirada de início no socialismo utópico. 
Começa a ficar mais clara a cisão entre as duas classes, cuja contradição sera explicitada pelas teorias que criticam o liberalismo. 
A Alemanha ainda se encontra dividida em diversos Estados, e a unificação se dará apenas em 1871, sob o comando de Bismarck, primeiro-ministro da Prússia. 
Para tanto foram necessárias três guerras e muitas táticas de unificação econômica. 
Foi, portanto, numa Alemanha agitada e cheia de problemas que surgiu o marxismo. Na verdade, essa obra é fruto não só de KarI Marx (1818 -1883) mas também de seu amigo Friedrich Engels (1820 -1895), que, além da colaboração ideológica, era industrial e pôde, por diversas vezes, ajudar Marx financeiramente nos momentos mais críticos. Escreveram juntos Manifesto comunista (1848) e A ideologia alemã.
Entre outras obras, Marx escreveu: O 18 Brumário de Luís Bonaparte, Contribuição à crítica da economia política, O capital. Engels escreveu: Anti-Dühring, A dialética da natureza, A origem família, da propriedade privada e do Estado, entre outras. 
Marx e Engels formularam suas idéias a partir da realidade social por eles observada: de um lado, o avanço técnico, o aumento do poder do homem sobre a natureza, o enriquecimento e o progresso; de outro, e contraditoriamente, a escravização crescente da classe operária, cada vez mais empobrecida. Para a elaboração da doutrina, partem da leitura dos economistas ingleses (Adam Smith e David Ricardo), da filosofia de Hegel (o conceito de dialética e uma nova concepção de história) e dos filósofos do socialismo utópico. 

Materialismo dialético
A teoria marxista compõe-se de uma teoria científica, o materialismo histórico, e de uma filosofia, o materialismo dialético. 
Para os materialistas, a história da filosofia tem longa tradição idealista, pressuposta até nas teorias em que o idealismo não transparece num primeiro  momento, culminando com o pensamento de Hegel, no século XIX. Para esse filósofo, é a própria razão que faz o tecido do real, e a ideia não é uma criação subjetiva do sujeito, mas a própria realidade objetiva, donde tudo procede.
Para o materialismo, a matéria é o dado primário, a fonte da consciência, e esta é um dado secundário, derivado, pois é reflexo da matéria.
No entanto, é preciso distinguir o materialismo marxista, que é dialético, do materialismo anterior a ele, conhecido como materialismo mecanicista ou "vulgar". Enquanto o materialismo mecanicista parte da constatação de um mundo composto de coisas e, em última análise, de partículas materiais que se combinam de forma inerte, o materialismo dialético considera que os fenômenos materiais são processos. Além disso, segundo o materialismo dialético, o espírito não é consequência passiva da ação da matéria, podendo reagir sobre aquilo que o determina. Ou seja, o conhecimento do determinismo liberta o homem por meio da ação deste sobre o mundo, possibilitando inclusive a ação revolucionária.

Materialismo histórico 

O materialismo histórico não é mais do que a aplicação dos princípios do materialismo dialético ao campo da história. E, como o próprio nome indica, é a explicação da história por fatores materiais, ou seja, econômicos e técnicos.
Marx inverte o processo do senso comum que pretende explicar a história pela ação dos "grandes homens", ou, às vezes, até pela intervenção divina. Para o marxismo, no lugar das idéias, estão os fatos materiais; no lugar dos heróis, a luta de classes. Em outras palavras, o que Marx explicitou foi que, embora possamos tentar compreender e definir o homem pela consciência, pela linguagem, pela religião, o que fundamentalmente o caracteriza é a forma pela qual reproduz suas condições de existência.
Portanto, para Marx, a sociedade se estrutura em níveis.
O primeiro nível, chamado de infra-estrutura, constitui a base econômica (que é determinante, segundo a concepção materialista). Engloba as relações do homem com a natureza, no esforço de produzir a própria existência, e as relações dos homens entre si. Ou seja, as relações entre os proprietários e não-proprietários, e entre os não-proprietários e os meios e objetos do trabalho.
O segundo nível, político-ideológico, é chamado de superestrutura, constituído: 
a) pela estrutura jurídico-política representada pelo Estado e pelo direito: segundo Marx, a relação de exploração de classe no nível econômico repercute na relação de dominação política, estando o Estado a serviço da classe dominante. 
b) pela estrutura ideológica referente às formas da consciência social, tais como a religião, as leis, a educação, a literatura, a filosofia, a ciência, a arte etc. Também nesse caso ocorre a sujeição ideológica da classe dominada, cuja cultura e modo de vida reflete as idéias e os valores da classe dominante. 
Vamos exemplificar como a infra-estrutura determina a superestrutura, comparando valores de dois diferentes períodos da história.
A moral medieval valoriza a coragem e a ociosidade da nobreza ocupada com a guerra, bem como a fidelidade, que é a base do sistema de suserania e vassalagem; do ponto de vista do direito, num mundo cuja riqueza é a posse de terras, considera-se ilegal (e imoral) o empréstimo a juros. Já na Idade Moderna, com o advento da burguesia, o trabalho é valorizado e, consequentemente, critica-se a ociosidade; também ocorre a legalização do sistema bancário, o que exige a revisão das restrições morais aos empréstimos. A religião protestante confirma os novos valores por meio da doutrina da predestinação, considerando o enriquecimento um sinal da escolha  divina.
Conforme os exemplos, as manifestações da superestrutura (no caso, moral e direito) são determinadas pelas alterações da infraestrutura decorrentes da passagem econômica do sistema feudal para o capitalista. Portanto, para estudar a sociedade não se deve, segundo Marx, partir do que os homens dizem, imaginam ou pensam, e sim da forma como produzem os bens materiais necessários à sua vida. Analisando o contrato que os homens estabelecem com a natureza para transformá-la por meio do trabalho e as relações entre si é que se descobre como eles produzem sua vida e suas idéias. No entanto, essas determinações não podem nos fazer esquecer do caráter dialético de toda determinação: ao tomar conhecimento das contradições, o homem pode agir ativamente sobre aquilo que o determina. A práxis ao analisar o ser social do homem, Marx desenvolve uma nova antropologia, segundo a qual não existe uma "natureza humana" idêntica em todo tempo e lugar.
Para ele, o existir humano decorre do agir, pois o homem se autoproduz à medida que transforma a natureza pelo trabalho. Sendo o trabalho uma ação coletiva, a condição humana depende da sua existência social. Por outro lado, o trabalho é um projeto humano e como tal depende da consciência que antecipa a ação pelo pensamento. Com isto se estabelece a dialética homem-natureza e pensar-agir.
Marx chama de práxis à ação humana de transformar a realidade. Nesse sentido, o conceito de práxis não se identifica propriamente com a prática, mas significa a união dialética da teoria e da prática. Isto é, ao mesmo tempo que a consciência é determinada pelo modo como os homens produzem a sua existência. também a ação humana é projetada, refletida, consciente. Por isso a filosofia marxista é também conhecida como filosofia da práxis. 

A luta de classes

As relações fundamentais de toda sociedade humana são as relações de produção, que revelam a maneira pela qual os homens, a partir das condições naturais, usam as técnicas e se organizam por meio da divisão do trabalho social. As relações de produção correspondem a um certo estádio das forças produtivas, que consistem no conjunto formado pelo clima, água, solo, matérias-primas, máquinas, mão-de-obra e instrumentos de trabalho. Por exemplo, quando os instrumentos de pedra são substituídos pelos de metal, ou quando o desenvolvimento da agricultura se torna possível pela descoberta de técnicas de irrigação, de adubagem do solo ou pelo uso do arado e de veículos de roda, estamos diante de alterações das forças produtivas que por sua vez provocarão mudanças nas formas pelas quais os homens se relacionam.
Chamamos modo de produção a maneira pela qual as forças produtivas se organizam em determinadas relações de produção num dado momento histórico. Por exemplo, no modo de produção capitalista, as forças produtivas, representadas sobretudo pelas máquinas do sistema fabril, determinam as relações de produção caracterizadas pelo dono do capital e pelo operário assalariado.
No entanto, as forças produtivas só podem se desenvolver até certo ponto, pois, ao atingirem um estádio por demais avançado, entram em contradição com as antigas relações de produção, que se tornam inadequadas. Surgem então as divergências e a necessidade de uma nova divisão de trabalho. A contradição aparece como luta de classes.
Vejamos como isso ocorre na história da humanidade.
Nas sociedades primitivas, os homens se unem para enfrentar os desafios da natureza hostil e dos animais ferozes. Os meios de produção, as áreas de caça, assim como os produtos, são propriedades comuns, isto é, pertencem a toda a sociedade (comuna primitiva). A base econômica determina certa maneira de pensar peculiar, em que não há sentimento de posse, uma vez que não existe propriedade privada.
O modo de produção patriarcal surge quando o homem inicia a domesticação de animais , desenvolve a agricultura graças ao uso dos instrumentos de metal e fabrica vasilhas de barro, o que possibilita fazer reservas. Quais as consequências das modificações das forças produtivas? Alteram-se as relações de produção e o modo de produção: aparece uma forma específica de propriedade (propriedade da família, num sentido muito amplo); diferenciam-se funções de classe (autoridade do patriarca, do pai de família): há alteração do direito hereditário, estabelecendo-se a filiação paterna (e não mais materna).
O modo de produção escravista é decorrência do aumento da produção além do necessário à subsistência e exige o recurso a novas forças de trabalho, conseguidas geralmente entre prisioneiros de guerra, transformados em escravos. Com isso surge propriamente a propriedade privada dos meios de produção, e a primeira forma de exploração do homem pelo homem com a consequente contradição entre senhores e escravos. Dá-se então a separação entre trabalho intelectual e trabalho manual. A ociosidade passa a ser considerada a perfeição do homem livre, enquanto o trabalho manual, considerado servil, é desprezado.
O modo de produção escravista é típico da Antiguidade grega e romana. A luta dos povos bárbaros contra o Império Romano, no final da Antiguidade, não é senão a luta contra a escravidão a eles imposta pelos romanos. A contradição do regime escravista leva-o a ruína e, para restaurar a economia, são necessárias novas relações de produção.
No modo de produção feudal, a base econômica é a propriedade dos meios de produção pelo senhor feudal. O servo trabalha um tempo para si e outro para o senhor, o qual, além de se apropriar de uma parte da produção daquele, ainda lhe cobra impostos pelo uso comum do moinho, do lagar etc. A contradição dos interesses das duas classes leva a conflitos que farão aparecer, paulatinamente, uma nova figura: o burguês. Surgida dentre os servos que se dedicam ao artesanato e ao comércio, a nova figura social forma os burgos e consegue aos poucos a liberdade pessoal e das cidades. A jovem burguesia está destinada a desenvolver as formas produtivas que em determinado momento exigirão novas relações de produção.
O modo de produção capitalista é a nova síntese que surge das ruínas do sistema feudal, ou seja, da contradição entre a tese (senhor feudal) e a antítese (servo). O que vimos até agora é que o movimento dialético pelo qual a história se faz tem um motor: a luta de classes.
Chama-se luta de classes ao confronto entre duas classes antagônicas quando lutam por seus interesses de classe. No modo de produção capitalista, a relação antitética se faz entre o burguês, que é o detentor do capital, e o proletário, que nada possui e só vive porque vende sua força de trabalho. Veremos agora, com mais atenção, como se processa a relação antagônica entre as duas classes. 

A mais-valia 

O sistema capitalista consiste na produção de mercadorias. Mercadoria é tudo o que é produzido não tendo em vista o valor de uso (por exemplo, uma malha que fazemos para nosso próprio uso), mas tem por objetivo o valor de troca, isto é, a venda do produto. Sendo a mercadoria um produto do trabalho, o seu valor é determinado pelo total de trabalho socialmente necessário para produzi-la. Como a mercadoria é produzida?
Para sobreviver, o trabalhador vende ao capitalista a única mercadoria que possui, que é a capacidade de trabalhar.
Qual deve ser o valor da força de trabalho?
Sendo um ser vivo, o trabalhador precisa receber o necessário para a subsistência e reprodução de sua capacidade de trabalho, ou seja, alimento, roupa, moradia, possibilidade de criar os filhos etc. O salário deve portanto corresponder ao custo de sua manutenção e de sua família. O operário se distingue dos escravos e dos servos por receber um salário a partir do contrato livremente aceito entre as partes. No entanto, na obra O capital, Marx explica que a relação de contrato é livre só na aparência e que, na verdade, o desenvolvimento do capitalismo supõe a exploração do trabalho do operário. Isso porque o capitalista contrata o operário para trabalhar durante um certo período de horas a fim de alcançar determinada produção. Mas o trabalhador, estando disponível todo o tempo, na verdade produz mais do que foi calculado, ou seja, a força de trabalho pode criar um valor superior ao estipulado inicialmente. No entanto, a parte do trabalho excedente não é paga ao operário, e serve para aumentar cada vez mais o capital.
Marx diz que, ao comprar a força de trabalho, o capitalista "adquire o direito de servir-se dela ou de fazê-la funcionar durante todo o dia ou toda a semana (...) Como vendeu sua força de trabalho ao capitalista, todo o valor, ou todo o produto por ele (pelo operário) criado pertence ao capitalista, que é dono de sua força de trabalho. Por conseguinte, desembolsando 3 xelins, o capitalista realizará o valor de 6, pois com o desembolso de um valor no qual se cristalizam seis horas de trabalho receberá em troca um valor no qual estão cristalizadas do três horas. Se repete, diariamente, essa operação, o capitalista desembolsará 3 xelins por dia e embolsará 6, cuja metade tornará a inverter no pagamento de novos salários, enquanto a outra metade formará a mais-valia, pela qual o capitalista não paga equivalente algum. Esse tipo de intercâmbio entre o capital e o trabalho é o que serve de base à produção capitalista, ou ao sistema do salariado, e tem de conduzir, sem cessar, à constante reprodução do operário como operário e do capitalista como capitalista". 
Chama-se mais-valia, portanto, ao valor que o operário cria além do valor de sua força de trabalho, e que é apropriado pelo capitalista.

Alienação e ideologia 

Com a descrição da mais-valia, Marx configura o caráter de exploração do sistema capitalista. De imediato o operário não é capaz de reverter o quadro porque se encontra alienado.
Ao desenvolver o conceito de alienação, Marx rejeita as explicações comuns que aparecem em toda a história da filosofia, ora com contornos religiosos, ora metafísicos ou morais. A elas opõe a análise das condições reais do trabalho humano e descobre que a alienação tem origem na vida econômica: quando o operário vende no mercado a força de trabalho, o produto que resulta do seu esforço não mais lhe pertence e adquire existência independente dele.
Como vimos (Trabalho e alienação), a perda do produto significa outras perdas para o operário: ele não mais projeta ou concebe aquilo que vai executar (dá-se a dicotomia concepção-execução do trabalho, a separação entre o pensar e o agir); com o aceleramento da produção, provocado pela crescente mecanização do trabalho (linha de montagem), o operário executa cada vez mais apenas uma parte do produto (trabalho parcelado ou trabalho "em migalhas"); o ritmo do trabalho é dado exteriormente e não obedece ao próprio ritmo natural do seu corpo.
O produto do trabalho do operário subtrai-se portanto á sua vontade, à sua consciência e ao seu controle, e o produtor não se reconhece no que produz. O produto surge como um poder separado do produtor, como realidade soberana e tirânica que o domina e ameaça. A esse processo Marx chama fetichismo da mercadoria.
Da mesma forma, a mercadoria não é apenas o resultado da relação de produção, mas vale por si mesma, como realidade autônoma e, mais ainda, como determinante da vida dos homens.
Produz-se então a grande inversão em que a reificação do homem (res: "coisa") é o contraponto do fetichismo da mercadoria. Quando a mercadoria se "anima", se "humaniza", obriga o homem a sucumbir às forças das leis do mercado que o arrastam ao enfrentamento de crises, guerras e desemprego. A consequência é a desumanização do homem, sua reificação.
O que faz com que os homens não percebam a reificação e não reajam prontamente à exploração é a ideologia. À medida que o modo de produção vai sendo superado, a classe dominante procura retardar a transformação mantendo o modo de produção caduco com suas superestruturas, disfarçando as contradições, dissimulando as aparências e apresentando soluções reformistas, impedindo, assim, que as classes oprimidas formem a sua própria consciência de classe.
Em outras palavras, as idéias, condutas e valores que permeiam a concepção de mundo de uma determinada sociedade, e que representam os interesses da classe dominante, ao serem generalizadas às classes dominadas ajudam a manter a dominação.
A ideologia impede que o proletário tenha consciência da própria submissão, porque camufla a luta de classes quando faz a representação ilusória da sociedade mostrando-a como una e harmônica. Mais ainda, a ideologia esconde que o Estado, longe de representar o bem comum, é expressão dos interesses da classe dominante. É o que veremos a seguir. 

Estado e sociedade 

Marx não dedicou um trabalho específico sobre a análise do Estado, mas suas idéias a esse respeito estão espalhadas por suas obras. Talvez isso se deva ao fato de ele ter uma concepção negativa do Estado, diferentemente de Hegel, para quem o Estado era considerado o "deus terreno", o momento final do Espírito objetivo quando são superadas as contradições da sociedade civil.
Para Marx, o Estado não supera as contradições da sociedade civil, mas é o reflexo delas, e está aí para perpetuá-las. Por isso só aparentemente visa ao bem comum, estando de fato a serviço da classe dominante. Portanto, o Estado é um mal que deve ser extirpado.
Ao lutar contra o poder da burguesia, o proletariado deve destruir o poder estatal, o que não será feito por meios pacíficos, mas pela revolução. No entanto, diferentemente dos anarquistas, Marx não considera viável a passagem brusca da sociedade dominada pelo Estado burguês para a sociedade sem Estado, havendo a necessidade de um período de transição.
A classe operária, organizando-se num partido revolucionário, deve destruir o Estado burguês e criar um novo Estado capaz de suprimir a propriedade privada dos meios de produção. A esse novo Estado dá-se o nome de ditadura do proletariado, uma vez que, segundo Marx, o fortalecimento contínuo da classe operária é indispensável enquanto a burguesia não tiver sido liquidada como classe no mundo inteiro.

A utopia comunista 

A primeira fase, de vigência da ditadura do proletariado, corresponde ao socialismo, que supõe a existência do aparelho estatal, da burocracia, do aparelho repressivo e do aparelho jurídico. Nessa fase persiste a luta contra a antiga classe dominante, a fim de evitar a contra-revolução. O princípio do socialismo é: "De cada um, segundo sua capacidade, a cada um, segundo seu trabalho".
A segunda fase, chamada comunismo, tem como princípio: "De cada um, segundo sua capacidade, a cada um, segundo suas necessidades".
O comunismo se define pela supressão da luta de classes e, consequentemente, pelo desaparecimento do Estado. Na "anarquia feliz" o desenvolvimento prodigioso das forças produtivas levaria à"era da abundância", à supressão da divisão do trabalho em tarefas subordinadas (materiais) e tarefas superiores (intelectuais), à ausência de contraste entre cidade e campo e entre indústria e agricultura. Se a passagem para o comunismo significa o desaparecimento das classes, como fica a afirmação que fizemos inicialmente de que, para Marx, a luta de classes é o motor da história?
O movimento da história continuaria, pois ela é um processo; só que a luta não mais seria entre a classe dominante e a dominada, mas entre a vanguarda e os elementos que impedem as mudanças por comodismo ou incompreensão. A luta seria entre o progresso e as forças conservadoras, entre o novo e o velho.
Veremos a difusão das idéias marxistas e sua aplicação no chamado "socialismo real". 

Exercícios 

1- Quais são as três fontes do pensamento marxista? 

2 - Em que consiste o materialismo histórico?

3- Qual é sua crítica ao conceito tradicional de história? 

4 - Quais são os modos de produção indicados no texto?

5 - Faça um esquema usando a tríade: tese, antítese, síntese. 

6 - Leia a citação de Goethe constante da epígrafe e a interprete usando o conceito de práxis.

7 - Leia a citação de Marx na epígrafe e explique qual é o novo sentido de teoria para ele. 

8 - "A história se faz a partir da ação dos heróis e dos santos." Critique essa afirmação a partir dos conceitos marxistas. 

9 - Explique: fetichismo e reificação são os dois lados da mesma moeda chamada alienação. 

10 - Em que medida a ideologia é um instrumento de dominação de classe? 

11 - "O Estado é uma instituição que representa o interesse do bem comum." Critique essa afirmação usando conceitos marxistas. 

12 - O que significa a ditadura do proletariado e por que ela é necessária, segundo Marx? 

13 - Leia o texto complementar de Marx e, ao responder às questões, utilize também os conceitos aprendidos na leitura do capítulo: Não é a consciência dos homens que determina o seu ser: o seu ser social que, inversamente, determina a sua consciência. Explique em que sentido essa frase é indicativa do materialismo marxista. 

14 - Indique no texto o que Marx designa por infra-estrutura e por superestrutura. 

15 - O que determina a transformação de uma organização social? 

16 - O que Marx quer dizer quando afirma que os modos de produção asiático, antigo, feudal e burguês podem ser qualificados como épocas progressivas? 

17 - Compare a posição de Marx com a dos filósofos anteriores (liberais), a partir da expressão: "contradição que nasce das condições de existência social dos indivíduos". 

18 - Explique em que sentido o determinismo a que Marx se refere no início do texto não leva a um materialismo mecanicista. 

Texto complementar 

Prefácio à Contribuição à crítica da economia política 

Nas minhas pesquisas cheguei à conclusão de que as relações jurídicas - assim como as formas de Estado - não podem ser compreendidas por si mesmas, nem pela dita evolução geral do espírito humano, inserindo-se pelo contrário nas condições materiais de existência de que Hegel, à semelhança dos ingleses e franceses do século XVIII, compreende o conjunto pela designação de "sociedade civil"; por seu lado, a anatomia da sociedade civil deve ser procurada na economia política.
(...) A conclusão geral a que cheguei e que, uma vez adquirida, serviu de fio condutor dos meus estudos, pode formular-se resumidamente assim: na produção social da sua existência, os homens estabelecem relações determinadas, necessárias, independentes da sua vontade, relações de produção que correspondem a um determinado grau de desenvolvimento das forças produtivas materiais. O conjunto destas relações de produção constitui a estrutura econômica da sociedade, a base concreta sobre a qual se eleva uma superestrutura jurídica e política e à qual correspondem determinadas formas de consciência social. O modo de produção da vida material condiciona o desenvolvimento da vida social, política e intelectual em geral. Não é a consciência dos homens que determina o seu ser; é o seu ser social que, inversamente, determina a sua consciência. Em certo estágio de desenvolvimento, as forças produtivas materiais da sociedade entram em contradição com as relações de produção existentes ou, o que é a sua expressão jurídica, com as relações de propriedade no seio das quais se tinham movido até então. De formas de desenvolvimento das forças produtivas, estas relações transformam-se no seu entrave. Surge então uma época de revolução social. A transformação da base econômica altera, mais ou menos rapidamente, toda a imensa superestrutura. Ao considerar tais alterações é necessário sempre distinguir entre a alteração material - que se pode comprovar de maneira cientificamente rigorosa - das condições econômicas de produção, e as formas jurídicas, políticas, religiosas, artísticas ou filosóficas, em resumo, as formas ideológicas pelas quais os homens tomam consciência deste conflito, levando-o às suas últimas consequências. Assim como não se julga um indivíduo pela ideia que ele faz de si próprio, não se poderá julgar uma tal época de transformação pela mesma consciência de si; é preciso, pelo contrário, explicar esta consciência pelas contradições da vida material, pelo conflito que existe entre as forças produtivas sociais e as relações de produção. Uma organização social nunca desaparece antes que se desenvolvam todas as forças produtivas que ela é capaz de conter; nunca relações de produção novas e superiores se lhe substituem antes que as condições materiais de existência destas relações de produção no próprio seio da velha sociedade. É por isso que a humanidade só levanta os problemas que é capaz de resolver e assim, numa observação atenta, descobrir-se-á que o próprio problema só surgiu quando as condições materiais para o resolver já existiam ou estavam, pelo menos, em vias de aparecer. Em um caráter amplo, os modos de produção asiático, antigo, feudal e burguês moderno podem ser qualificados como épocas progressivas da formação econômica da sociedade. As relações de produção burguesas são a última forma contraditória do processo de produção social, contraditória não no sentido de uma contradição individual, mas de uma contradição que nasce das condições de existência social dos indivíduos. No entanto, as forças produtivas que se desenvolvem no seio da sociedade burguesa criam ao mesmo tempo as condições materiais para resolver esta contradição. Com esta organização social termina, assim, a Pré-História da sociedade humana. (Karl Marx, Contribuição à crítica da economia política. São Paulo, Mart ins Fontes, 1977, p. 23.) 

# O anarquismo 

Qualquer pessoa que tenha lido a história da humanidade aprendeu que a desobediência é a virtude original do homem. (Oscar Wilde) 

Eu aceito com entusiasmo o lema que afirma "O melhor governo é aquele que menos governa"; e gostaria de vê-lo posto em prática deforma sistemática. Uma vez posto em prática, ele acabaria resultando em algo que também acredito: "O melhor governo é aquele que não governa "; e quando os homens estiverem preparados, será exatamente este o tipo de governo que irão ter. (Henry Thoreau) 

Introdução 

Proudhon (1809-1865) e Bakunin (1814-1876), contemporâneos de Marx, com ele partilham as críticas ao sistema capitalista, à propriedade privada dos meios de produção e à exploração da classe proletária pela burguesia. Concordam também que as revoluções Francesa e Americana foram mais políticas que sociais, pois elas teriam renovado os padrões de autoridade, dando poder às novas classes, mas não modificaram basicamente a estrutura social e econômica da França e dos Estados Unidos.
A relação de amizade e admiração de Proudhon e Bakunin com Marx rompeu-se, porém, a partir de divergências que se tornaram cada vez mais agudas. O nó do desentendimento encontra-se na teoria marxista da ditadura do proletariado. Como vimos, Marx preconizava um degrau necessário antes do advento do comunismo, quando a força do proletariado, exercida através do partido, evitaria a contra-revolução da classe deposta. Só depois o poder se dissolveria rumo à sociedade sem Estado.
Bakunin acusa Marx de otimista, não considerando ser possível evitar a rígida oligarquia de funcionários públicos e tecnocratas que tenderiam a se perpetuar no poder. 

Principais idéias do anarquismo 

É comum as pessoas identificarem anarquismo com "caos", "bagunça". Na verdade, não se trata disso. Etimologicamente, a palavra é formada pelo sufixo archon, que em grego significa "governante", e em, "sem", ou seja, "sem governante". O princípio que rege o anarquismo está na declaração de que o Estado é nocivo e desnecessário, pois há formas alternativas de organização voluntária.
Se a religião, o Estado e a propriedade contribuíram em determinado momento histórico para o desenvolvimento do homem, passam a ser restrições a sua emancipação.
No entanto, a tese anarquista da negação do Estado não deve levar as pessoas a pensarem que se trata de uma proposta individualista, pois a organização não coercitiva se funda na cooperação e na aceitação da comunidade. O homem é um ser naturalmente capaz de viver em paz com seus semelhantes, mas as instituições autoritárias deformam e atrofiam suas tendências cooperativas. Surge, então, um aparente paradoxo, ou seja, a realização da ordem na anarquia; essa ordem na anarquia é uma ordem natural.
A sociedade estatal possui uma estrutura cuja construção é artificial, pois cria uma pirâmide em que a ordem é imposta de cima para baixo. A sociedade anarquista seria não uma estrutura, mas um organismo que cresce de acordo com as leis da natureza, e a ordem natural se expressa pela autodisciplina e cooperação voluntária e não pela decisão hierárquica.
Por isso, os anarquistas repudiam até a formação de partidos, já que estes prejudicam a espontaneidade de ação, tendem a se burocratizar e a exercer formas de poder. Também temem as estruturas teóricas, porque podem tornar-se um corpo dogmático. Daí o anarquismo ser mais conhecido como movimento vivo e não tanto como doutrina. A ausência de controle e de poder torna o movimento anarquista oscilante, sempre frágil e flexível, podendo ficar inativo por muito tempo para surgir espontaneamente quando necessário.
A crítica à existência do Estado leva à tentativa de inversão da pirâmide de poder que o Estado representa; a organização social que deriva dessa inversão rege-se pelo princípio da descentralização, procurando estabelecer a forma mais direta de relação, ou seja, a do contato "cara a cara". A responsabilidade começa a partir dos núcleos vitais da vida social, onde também são tomadas as decisões: o local de trabalho, os bairros. Quando isso não é possível por envolver outros segmentos, formam-se federações. O importante, porém, é manter a participação, a colaboração, a consulta direta entre as pessoas envolvidas.
Os anarquistas criticam a forma tradicional de democracia parlamentar, pois a representação contém o risco de alçar ao poder um demagogo. Quando a decisão envolve áreas mais amplas, havendo necessidade de convocação de assembléia, a proposta é de escolha de delegados por tempo limitado e sujeitos à revogação do seu mandato.
Além da crítica feita ao Estado, os anarquistas preveem que a supressão da propriedade privada dos meios de produção deve dar lugar a formas de organização que estimulem as ações dos indivíduos livres no corpo coletivo, o que poderia se tornar possível na comuna livre e em empresas dirigidas coletivamente.
Da mesma forma repudiam a estrutura hierárquica da Igreja e defendem o ateísmo como condição de autonomia moral do homem, liberto dos dogmas e da noção de pecado: "Para afirmar o homem, é preciso negar Deus". 

Representantes e movimentos 

O mais brilhante anarquista foi Bakunin, filho de ricos aristocratas russos. Tornou-se revolucionário graças à influência de Proudhon. Participou das rebeliões que ocorreram em Paris, Praga e Dresden em 1848 -1849, tendo sido preso por vários anos e depois exilado na Sibéria. De volta à agitação, em 1870 tomou parte nas revoltas de Lyon e Bolonha. Fez cerradas críticas a Marx, tendo sido expulso da Primeira Internacional em 1872. Com outros companheiros fundou a Internacional Saint-Imier. Sua obra é vigorosa e apaixonada, mas mal-organizada, pois dificilmente Bakunin terminava o que começava. Era sobretudo um ativista. 
Kropótkin (1842 -1912), ao contrário de Bakunin, defende a ação não-violenta e luta pelo respeito à vida humana, condenação a pena de morte, a tortura e qualquer forma de castigo imposta ao homem pelo homem.
O romancista Leon Toistól (1828 -1910), embora se intitulasse um "pacifista cristão", tinha opiniões sobre o governo e a autoridade que o aproximam dos ideais anarquistas. A pregação da resistência não-violenta influenciou Gandhi na estratégia da desobediência civil durante a luta pela independência da Índia.
Entre defensores e simpatizantes, o anarquismo conta com artistas, jornalistas e intelectuais em geral, como Oscar Wilde, George Orwell, Aldous Huxley, Picasso, Alex Comford, Herbert Read, Emma Goldman, Malatesta e George Woodcock. 
No final do século XIX, o movimento sindical deu ampla força ao anarquismo, gerando o movimento chamado anarco - sindicalismo, pelo qual os sindicatos não deveriam se preocupar apenas em conseguir melhores salários, mas em se tornar agentes de transformação da sociedade. Segundo o espírito anarquista, os sindicatos não têm poder centralizado, mas se organizam em pequenos grupos de fábrica, e a ampliação dos contatos em nível estadual e nacional deve sempre preservar a participação direta do trabalhador.
Foi na Espanha que o movimento atingiu maior expressividade, até quando não pôde mais resistir à ação dos exércitos do ditador Franco. Do mesmo modo, o advento do fascismo na Itália e do nazismo na Alemanha significou o enfraquecimento do movimento naqueles países. 
O anarquismo ressurgiu timidamente depois da Segunda Guerra Mundial e recrudesceu na década de 60 com o ativismo de jovens de vários países da Europa e da América, culminando com o movimento estudantil de 1968 em Paris.
Frontispício da partitura musical de A Internacional, hino oficial do movimento operário. As internacionais representaram o esforço de organização do operariado em todo o mundo. 

O anarquismo no Brasil 

Com a abolição da escravatura no final do século XIX, a necessidade de mão -de-obra livre favoreceu a imigração de europeus, sobretudo italianos, que vieram inicialmente para as fazendas de café. Data do início da República Velha a vinda de um grupo de italianos que, autorizados pelo então imperador Pedro II, instalou-se no interior do Paraná fundando a Colônia Cecilia nos moldes de uma comunidade anarquista. Experiência efêmera e cheia de dificuldades, não conseguiu florescer.
No começo do século XX, com a urbanização decorrente da industrialização, organizou-se o anarco-sindicalismo, visando a atuação mais eficaz na luta contra a opressão patronal. Era um movimento atuante não só na preparação das greves, mas na difusão do ideal anarquista por meio de escolas e jornais.
Merece destaque a atuação de José Oiticica (1882 -1957), que, além de teórico divulgador das idéias anarquistas, foi ativista e por isso exilado. Professor universitário e também do Colégio Pedro II, no Rio de Janeiro, tentava aplicar em aula os princípios anarquistas. Homem erudito, foi autor de obra variadíssima; além dos textos políticos, escreveu poesias, contos, teatro e desenvolveu trabalhos linguístico-filológicos de primeira linha. 

Exercícios 

1 - Em que Marx e Bakunin concordam e em que discordam? 

2 - Por que o anarquismo não deve ser confundido com uma proposta individualista? 

3 - Segundo os anarquistas, como deve ser processada a descentralização? 

4 - Explique o significado anarquista da citação de Oscar Wilde constante da epígrafe. 

5 - Leia a segunda epígrafe (Thoreau) e explique como ela é adequada à concepção anarquista a respeito do Estado. Em seguida justifique a crítica que os anarquistas fizeram ao conceito marxista de ditadura do proletariado. 

6 - Leia o texto complementar e responda às questões a seguir: 

a) Segundo Woodcock, em que sentido o relógio transformou o trabalho humano? 

b) Antes dos relógios de precisão, como era o tempo do trabalhador do campo? 

c) Em que sentido não é possível pensar no desenvolvimento do capitalismo industrial sem o recurso do relógio de precisão? 

d) Faça uma redação referindo-se ao seu cotidiano, marcado pela "ditadura" do relógio. 

Texto complementar 

A ditadura do relógio 

Não há nada que diferencie tanto a sociedade ocidental de nossos dias das sociedades mais antigas da Europa e do Oriente do que o conceito de tempo. Tanto para os antigos gregos e chineses quanto para os nômades árabes ou para o peão mexicano de hoje, o tempo é representado pelos processos cíclicos da natureza, pela sucessão dos dias e das noites, pela passagem das estações. Os nômades e os fazendeiros costumavam medir - e ainda hoje o fazem - seu dia do amanhecer até o crepúsculo e os anos em termos de tempo de plantar e de colher, das folhas que caem e do gelo derretendo nos lagos e rios. O homem do campo trabalhava em harmonia com os elementos, como um artesão, durante tanto tempo quanto julgasse necessário. O tempo era visto como um processo natural de mudança e os homens não se preocupavam em medi-lo com exatidão. Por essa razão, civilizações que eram altamente desenvolvidas sob outros aspectos dispunham de meios bastante primitivos para medir o tempo: a ampulheta cheia que escorria, o relógio de sol inútil num dia sombrio, a vela ou lâmpada onde o resto de óleo ou cera que permanecia sem queimar indicava as horas. 
(...)O homem ocidental civilizado, entretanto, vive num mundo que gira de acordo com os símbolos mecânicos e matemáticos das horas marcadas pelo relógio. É ele que vai determinar seus movimentos e dificultar suas ações. O relógio transformou o tempo, transformando-o de um processo natural em uma mercadoria que pode ser comprada, vendida e medida como um sabonete ou um punhado de passas, de uvas. É, pelo simples fato de que, se não houvesse um meio para marcar as horas com exatidão, o capitalismo industrial nunca poderia ter se desenvolvido, nem teria continuado a explorar os trabalhadores, o relógio representa um elemento de ditadura mecânica na vida do homem moderno, mais poderoso do que qualquer outro explorador isolado ou do que qualquer outra máquina. 
(...) A princípio, esta nova atitude em relação ao tempo, este novo ritmo imposto à vida foi ordenado pelos patrões, senhores dos relógios, e os pobres o recebiam a contragosto. E o escravo da fábrica reagia, nas horas de folga, vivendo na caótica irregularidade que caracterizava os cortiços encharcados de gim dos bairros pobres no início da era industrial do século XIX. Os homens se refugiavam no mundo sem hora marcada da bebida ou do culto metodista. Mas, aos poucos, a ideia da regularidade espalhou-se, chegando aos operários. A religião e a moral do século XIX desempenharam seu papel, ajudando a proclamar que "perder tempo" era um pecado. A introdução dos relógios, fabricados em massa a partir de 1850, difundiu a preocupação com o tempo entre aqueles que antes se haviam limitado a reagir ao estímulo do despertador ou à sirene da fábrica. Na igreja e na escola, nos escritórios e nas fábricas, a pontualidade passou a ser considerada como a maior das virtudes. E desta dependência servil ao tempo marcado nos relógios, que se espalhou insidiosamente por todas as classes sociais no século XIX, surgiu a arregimentação desmoralizante que ainda hoje caracteriza a rotina das fábricas.
O homem que não conseguir ajustar-se deve enfrentar a desaprovação da sociedade e a ruína econômica, a menos que abandone tudo, passando a ser um dissidente para o qual o tempo deixa de ser importante. Refeições feitas às pressas, a disputa de todas as manhãs e de todas as tardes por um lugar nos trens e nos ônibus, a tensão de trabalhar obedecendo horários, tudo isso contribui, pelos distúrbios digestivos e nervosos que provoca, para arruinar a saúde e encurtar a vida dos homens.
(...) O operário transforma-se, por sua vez, num especialista em "olhar o relógio", preocupado apenas em saber quando poderá escapar para gozar as suas escassas e monótonas formas de lazer que a sociedade industrial lhe proporciona; onde ele, para "matar o tempo", programará tantas atividades mecânicas com tempo marcado, como ir ao cinema, ouvir rádio e ler jornais, quanto permitir o seu salário e o seu cansaço. Só quando se dispõe a viverem harmonia com sua fé ou com sua inteligência é que o homem sem dinheiro consegue deixar de ser um escravo do relógio. (G. Woodcock, A rejeição da política. in Os grandes escritos anarquistas. p. 120 e segs.)